sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Neve.

Chego cansado perto do riacho.
Ajoelho-me, lavo a cara destruindo o meu reflexo, também eu me sinto destruído.
Deixei tudo para trás, caminho há mais de sete dias, mais sete estou na fronteira…
Quando sinto vontade de desistir, quando o frio é tanto que me impede de pensar, quando a fome me deixa tonto, é o calor da tua cama que me faz caminhar, é a esperança de um dia melhor para nós que me enrijece os músculos.
Parece-me por vezes que falas comigo, consigo ouvir a tua voz na minha cabeça, nem sempre percebo o que dizes, mas sei que me estás a elogiar.
Quando procuro dormir para esquecer a fome costumo pensar na tua cara, concentro-me na perfeição dos teus lábios, nos contornos do teu nariz, na pureza dos teus olhos, sorrio sabendo que és tudo o que quero.
Ontem de noite ouvi um tiro, devia ser um qualquer caçador, o meu sangue gelou, pensei que não mais te iria ver, depois fiquei em paz, senti dentro de mim que tomei a decisão certa, a guerra dos outros não era para mim…
A minha guerra era outra, a minha guerra era criar o nosso filho com o amor que temos e com as artes do mundo.
Agora não o posso ver a razão da minha vida, não o posso abraçar, quantos anos passarão sem o ver crescer…
Quando ainda as nossas mãos caminhavam juntas no jardim, quando a minha única preocupação era dizer que te amo no dia seguinte, um homem no café perguntou-me o que eu pensava de ir para a guerra.
Eu disse-lhe que um homem que apenas procura amar e procriar nada faz na guerra.
Um homem que todos os dias dança com os pássaros, um homem que cada vez que beija o filho chora, um homem que esquece o tempo quando contempla a sua mulher nua nada faz no teatro do horror, um homem assim sabe bem o que tem de fazer.
Por isso caminho sem parar, alguns dirão falta de coragem, eu digo que ninguém me manda ceifar o meu irmão, certos caminhos um homem só os deve percorrer se realmente o quiser.
Chove agora intensamente, já não tenho água, tenho bebido uma qualquer nos riachos, sinto que não falta muito para chegar.
Esta manhã vi um homem morto no pinhal, talvez mais um que tentou a sua sorte.
Na terra dele irão dizer que desertou que foi um cobarde, eu escrevi na pedra que este homem para não matar, morreu!
Também eu, as vezes tenho medo, tenho medo de não te beijar jamais, mas sei algo que me protege e me dá força para continuar, tu caminhas comigo.
E quando as minhas pernas se recusarem a caminhar, caminharei com as tuas, e se um dia as nossas pernas não conseguirem andar mais tal seja o cansaço, então nessa altura caminharei com as pernas do nosso filho, e essas finas pernas escalam montanhas, atravessam rios, correm dias seguidos se assim tiver de ser.
Como tal, sinto no meu peito que não tarda estarei na fronteira, talvez esta vida ainda nos reserve um belo jantar na nossa casa, onde servirás paz e amor num ambiente de liberdade…

Sem comentários:

Enviar um comentário